Como a enchente chegou na paróquia da Vila Farrapos

16/05/2024

Como a enchente chegou na paróquia da Vila Farrapos

A paróquia Santíssima Trindade, no bairro Vila Farrapos, entre os mais afetados pelas enchentes que atingem o Rio Grande do Sul desde o início de maio, foi duramente atingida, assim como os moradores de toda a região, que ainda se encontram embaixo d 'água. A comunidade é atendida pelos padres jesuítas, que relataram como enfrentaram o alagamento, a ajuda às famílias e, finalmente, o resgate para um local seguro.

 

Relato do Pe. Vicente Zorzo

 

Às 22:30 horas do dia 3 de maio, quinta-feira, o Pe. Anderson acordou-me dizendo que tinha um grupo de pessoas pedindo socorro. Fui ao encontro deles e pediram abrigo na Igreja pois o rio estava transbordando. Imediatamente abrimos a Igreja e demos espaço para eles. As escadarias da Igreja tem dois metros e meio de altura. Percebi que as águas eram do Guaíba, pois estava muito suja.

 

Pelas 23h já tinha umas vinte pessoas na Igreja,  para irmos no Fé e Alegria e pegar o que tinha de pão biscoito, leite, suco e fruta para levarmos para a Igreja. O Pe. Anderson ficou acolhendo os desabrigados. Começamos a colocar todos elétricos domésticos em cima das mesas. A água já estava dentro da minha casa e tocava nas minhas canelas. Fomos organizando as coisas. Pegamos cobertores na Igreja e protegemos os computadores e máquinas de costura. Às águas já estavam na altura das minhas coxas. Levamos o que podemos para a Igreja. Voltei ao depósito da Igreja para pegar material de limpeza. As águas estavam na minha cintura. Na Igreja aumentava o número de pessoas. Vinham cadeirantes, idosos, famílias com crianças. Cada família trazia um cachorro.

 

4 de maio

 

Pelas 2h tínhamos 100 pessoas na Igreja. Organizei os grupos, orientei para que mantivessem a limpeza. Tive que ir buscar mais material de limpeza: água sanitária, sacos de lixo, facas e copos.  As águas estavam no meu umbigo. Mais pessoas vinham. Organizando as pessoas fui mordido por um cachorro. Resolvi ir no Fé e Alegria para pegar vinagre. Para chegar à cozinha do Fe e Alegria é preciso passar pela nossa residência. Ao abrir a porta encontrei tudo boiando. No Fé e Alegria a mesma coisa. Os congeladores cheios de carne que foi preciso quatro pessoas fortes para deslocar consegui mover com um dedo, uma leveza. Consegui pegar o vinagre e algumas toalhas secas. Voltei para a Igreja. Eram 5h. Ainda tínhamos luz. Liguei o som da Igreja para avisar que iríamos distribuir um lanche: pão com mel e leite. Com muita delicadeza todos foram pegando os seus alimentos. Lancharam bem. 

 

Às 7h tive que desligar os interruptores da Igreja porque as águas já estavam atingindo o relógio da entrada. Sem energia não conseguia carregar os celulares. Mais pessoas chegando. Pelas 9h percebi que a situação estava começando a ficar complicada. Vieram duas pessoas dizendo que teríamos que sair enquanto dava tempo pois o nível da água na rua estava apenas em 1,30 metros e que se poderia ir caminhando (uns mil e duzentos metros) dentro da água até um local onde teria ônibus para levar a um lugar seguro. Disse que os idosos, cadeirantes e baixinhos teriam que ficar. Umas 40 pessoas foram. Ficamos uns 100. Várias pessoas entraram em contato oferecendo ajuda via Whats. Naquele momento precisávamos sair. Pedi ajuda a alguns conhecidos que acionaram a Defesa Civil.

 

Pelas 11h veio o primeiro barco. Fizeram a triagem das emergências. Ficou definido que iriam os  cadeirantes, idosos, e enfermos. Em quatro viagens levaram umas 25 pessoas. Às 14h chegaram os bombeiros e disseram que iriam trazer comida para nós. Começaram a chegar mais pessoas. Já estávamos em torno de 14. Pelas 15h  veio um cachorro sendo levado pela correnteza. Um rapaz foi resgatá-lo. 

 

Às 16h chegou um bote de bombeiros do interior que vieram nos resgatar. Disseram que levaram duas horas para se situar. Estavam perdidos. Para quem conhece a vila é possível entender o que significa conduzir um bote por entre as ruas e praças. Levaram com ele uma senhora com uma criança que não estava bem. Recomendei que um rapaz da vila fosse com eles para mostrar o caminho. Não voltaram mais. Os alimentos que tínhamos estavam acabando. Restava somente leite. 

 

Às 17h começaram a chegar mais barcos. Começaram a evacuar aos poucos. Levavam idosos e crianças. Organizamos a distribuição. Por último iriam as famílias com cachorro. Tive que ir à Fé e Alegria para ver se em caso de urgência poderíamos sair por lá. As águas dentro do ginásio batiam no meu peito. Meu celular caiu na água. A partir daí deixou de funcionar.
 

Várias embarcações foram chegando. Éramos aproximadamente 70. Resolvi fechar a grade da rampa da Igreja. Tivemos que abri-la. Saiu uma lancha com sete. Chegaram mais 14 adultos, criança e cachorro. Mais barco e lanchas chegando. Adulto com cachorro. Sobrava lugar para um adulto sozinho. Pedi ao Pe. Anderson que fosse para ocupar a vaga.


Às 19h eram 24 pessoas. Muito escuro. Já tínhamos colocado uma vela acessa no canto da  rampa para  sinalizar aos bote. Fiquei de último para partir. Tinham cachorros. A responsável teve que deixá-los para levar os dois filhos. Os pais delas vizinhos da Igreja estavam ilhados. Coloquei-os num bote e pedi que fossem resgatar a família que iria cuidar. Havia mais um cachorro no fundo da Igreja. O que havia sido resgatado estava com muito medo. Foi junto. Fechei a Igreja no bote e fui para a área de apoio. Eram  20h30. 

 

Chegamos na BR sob uma suave chuva. Encontrei a turma que havia saído às 17h. Perguntei pelo Pe. Anderson. Não tinham visto. Um senhor disse que estava no mesmo barco. Haviam chegado. Com o aumento da chuva tivemos que ir para baixo do viaduto. A alça de acesso da nova ponte do Guaíba. Encontrei o Pe. Anderson e vários moradores da Farrapos. Ainda tive a oportunidade de saudar a última família resgatada. A que tinha a guarda dos quatro cachorros. Agradeceram imenso pelo que fiz pelos cachorro e que estão tão contentes que até veio um a mais. Um jovem partilhou comigo uma garrafa de água.
Esperamos até as 23h. Chegaram os ônibus para nos levar até um centro de acolhimento. À medida que ia subindo no ônibus foram surgindo muitas tensões. As pessoas com tornozeleira iam assumindo o controle. Reservaram um lugar para mim. Sentei-me. Uma senhora disse que tinham trocado a bolsa. O que faria sem os remédios? Peguei a bolsa, perguntei de quem era e se estava com outra. Um jovem levantou minha mão. Nisto ouvi alguém chamando por mim. Olhei para fora, o Pe. Anderson e companheiros do Colégio Anchieta, que estavam lá fora. Disse que iria sair do ônibus. Muitos quiseram me deter para que continuasse. Disse que tinha família lá fora me esperando. Sorriram. Ao sair disse a todos que tivessem forças. Em breve iremos nos encontrar na Igreja para celebrarmos o fato de estarmos vivos.

 

5 de maio

 

Às 1h30 fui dormir na residência da Comunidade do Colégio Anchieta, pensando no cachorro que teve quem o acolhesse. Se fazemos quase o impossível por ele, quanto mais podemos fazer pelos humanos Agora arregaçar as mangas pelo que vem a frente. Não estamos sozinhos.



Autor:
Ascom

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