Eldorado do Sul: fraternidade, fé e reconstrução

18/06/2024

Eldorado do Sul: fraternidade, fé e reconstrução

O município de Eldorado do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre, teve mais de 80% dos seus domicílios atingidos pela enchente do mês de maio. Estima-se que 32 mil pessoas foram afetadas de alguma forma. Dentre tantas histórias, queremos destacar a fé, a fraternidade e o espírito de reconstrução.

 

Depoimento Pe. Fabiano Glaeser dos Santos, pároco da paróquia Nossa Senhora Medianeira de Eldorado do Sul

 

“Sobre o início da tempestade, não teve nenhum alerta oficial do Poder Público. Havia os comentários, as previsões de muita chuva, de que poderia, havia o risco do Guaíba transbordar, de talvez ultrapassar marcas históricas, mas alerta, alerta oficial não houve. Quando a cidade já estava enchendo, aí um caminhão, um carro de som passou naqueles bairros que sempre alagam, alertando para a questão da saída da cidade, mas alerta oficial não houve.

 

A situação começou a ficar insustentável quando a água começou a chegar em lugares que nunca tinha chegado, como, por exemplo, na Igreja Matriz, em Eldorado do Sul. Na enchente de novembro, um pouquinho de água chegou na igreja, mas agora um volume grande de água começou a chegar na igreja.

 

A data que marca a enchente em Eldorado do Sul é 2 de maio, e foi justamente durante a missa. Nós estávamos fazendo tríduo em honra a São José, durante a missa a água chegou na frente da igreja. Aí eu saí de casa, saí da casa paroquial, fui pra casa de uma família da paróquia, que mora num bairro que nunca tinha alagado, e no dia seguinte tivemos que sair, porque a água chegou lá na rua deles e estava entrando dentro de casa. Saímos e fomos para Guaíba, na paróquia Nossa Senhora de Fátima.

 

O contato com os paroquianos se deu via WhatsApp e redes sociais. Nós temos aí os grupos de WhatsApp da paróquia, das diversas coordenações e mesmo um grupo geral, e se deu por ali. Se deu por ali o contato.

 

Alguns moradores e paroquianos ficaram em casa todo o tempo da enchente. Principalmente os paroquianos que moram em lugares onde a água entrou pouco dentro de casa. Estes permaneceram.

 

Eu fiquei abrigado, ainda estou aqui na casa paroquial da paróquia de Fátima, em Guaíba. Foi um período bastante tenso, embora estivesse bem abrigado. Na casa paroquial, que tem uma estrutura boa de comida, água, cama e chuveiro quente, e um ambiente de uma casa paroquial, mas foi um período muito tenso, vendo que a chuva não passava, que a enchente não passava, vendo que a água não baixava, diferente de outras enchentes, onde a água baixou dois, três dias depois, foi bastante tenso esse período no abrigo. O retorno para Eldorado se deu  umas três semanas depois do começo da enchente. 

 

Eu nunca tinha passado pela experiência de uma enchente, nunca na minha vida. Nunca tinha passado por isso. Então foi bastante tenso e triste ver que a igreja estava toda revirada, que a casa paroquial estava o primeiro piso destruído, revirado, bagunçado. Perceber que perdi coisas não só pessoais, mas coisas da paróquia, documentos históricos da paróquia, fotos, recordações, documentos de contabilidade, computadores. Foi bastante triste. Não há muitas palavras para descrever o sentimento.

 

Graças a Deus eu contei com muita ajuda para fazer as primeiras limpezas, tanto na igreja quanto na casa paroquial. Mais de dez padres do vicariato de Guaíba me ajudaram. O número exato eu não tenho certeza, mas foram mais de dez padres.

 

Inclusive contei com a ajuda do bispo auxiliar e referencial para o vicariato, Dom Odair que, no segundo mutirão, esteve presente e nos ajudou bastante esfregando e lavando. Então essa ajuda foi muito importante. Não só padres, vieram leigos também das paróquias.

 

Padres com seus leigos, mas a presença dos padres foi muito positiva. Isso chamou muita atenção dos próprios paroquianos. Ver tantos padres com vassoura e rodo na mão ajudando a limpar uma paróquia que não era sua.

 

Foi muito bom. E muitas doações em dinheiro, doações de materiais de comida das diversas comunidades da Arquidiocese. Nós reabrimos a igreja, rezamos a primeira missa na solenidade da Santíssima Trindade.

 

Nós reabrimos a igreja matriz de Eldorado do Sul. Rezamos a primeira missa. Ainda muito improvisado porque nós perdemos os microfones, perdemos materiais de missa.

 

Então foi uma missa bastante improvisada, mas rezamos a missa e foi muito bom. Contei com um bom número de fiéis que vieram participar da missa. Foi bastante emocionante poder celebrar novamente na igreja matriz depois de quase um mês.

 

Os moradores de Eldorado estão com bastante medo de continuarem na cidade. Claro, muitos já foram embora, muitos já foram embora, já se mudaram. Alguns estão se preparando para se mudarem.

 

Há alguns que ficaram, mas que querem ir embora, mas não agora, até porque sabem que se forem vender agora seus terrenos não vão conseguir o valor dele, vão ter que vender por um preço muito menor. Então, as pessoas que pagavam aluguel já foram embora. E os proprietários falam que vão esperar os terrenos valorizarem novamente para depois venderem e irem embora. Mas há aqueles que vão ficar, que não querem ir embora, mas que têm medo, medo de que aconteça uma nova enchente.”

Ouça o depoimento de Pe. Fabiano Glaeser dos Santos: https://open.spotify.com/episode/7Hh6uhRj4vVpBvfeg85SiJ?si=b70386b7293b434f

 

Depoimento Daiana Strapazon

 

Nome: Daiana Elza Strapazzon Curci

Profissão: Empresária e Farmacêutica

Casada com 2 filhos

Residente em Eldorado do Sul há 37 anos

 

“Sempre participei da igreja católica, e no ano passado comecei ativamente na coordenação da Nossa Senhora Medianeira. O alerta de enchente era apenas para os locais que já ocorriam alagamentos rotineiramente. Não era um alerta para toda a cidade.

 

De casa saímos no dia 3 de maio, pela manhã, ao acordar a água já estava no pátio todo, mesmo a casa sendo alta em relação a rua, minha mãe que mora do nosso lado saiu de barco, fomos para outro bairro onde eu já havia deixado nosso carro, ao chegarmos lá, pedi ao meu esposo que levasse nossas crianças para Porto Alegre, onde mora minha cunhada, porém, já não foi possível passar. A PRF havia bloqueado todos acessos entre Porto Alegre e Eldorado que é através de pontes, ele então fez a volta na própria BR-290, chegando em Eldorado do Sul já não era possível acessar a cidade de carro. Então, ele deixou nosso carro em cima do viaduto da cidade, veio com a nossa filha no colo e o mais velho caminhando dentro da água, até onde eu e a minha mãe o aguardávamos, saímos pelas 22h da casa,  junto com vizinhos todos segurando em uma corda, chegamos a prefeitura de onde estava saindo o último caminhão que deixava pessoas na BR. Dali conseguimos ir até o nosso carro e seguimos até Guaíba.

 

Em nossa casa entrou 1,30m, afetando os móveis e utensílios do primeiro andar. Nossa farmácia foi aberta pela Defesa Civil do município, pois está localizada em um dos bairros que encheu por último. Foram levados todos produtos e medicamentos que tínhamos em loja. A porta foi arrombada, perdemos móveis, prateleiras, computadores, documentos.

 

Ficamos 21 dias na casa de um amigo nosso em Guaíba, nossa família, que somos quatro, mais minha mãe, e uns três dias depois achei minha tia em um abrigo em Guaíba, conhecido como Coelhão e a levei junto na casa de nosso amigo. 

 

Minha prima de Porto Alegre organizou mutirão de limpeza com voluntários de vários lugares, o que nos auxiliou muito na limpeza da loja, nossa casa, na limpeza da casa de minha mãe, das minhas tias, pois a maior parte de nossa família mora em Eldorado. Meu tio chegou na cidade em 1982.

 

Como nossa casa foi uma das primeiras a baixar a água, em seguida começamos a limpar, minha prima Tatiana Delazeri, conseguia nos fornecer marmitas prontas de Porto Alegre aqui para Eldorado por um tempo, mais depois precisaram entregar a cozinha onde estavam produzindo, porém o pessoal continuou a perguntar sobre marmitas e  não tinha como deixar nossos vizinhos sem refeições, com isso começamos a cozinhar com as doações de comida que havíamos recebido e distribuímos aqui na rua, com o aumento do retorno dos vizinhos, aumentou a demanda por marmitas, e os vizinhos começaram a trazer doações para colaborar com as marmitas. Nossa cozinha com fogão simples e apenas uma mesinha auxiliar ficou pequena, então conversei com o Pe.Fabiano Glaeser dos Santos e o coordenador do salão aqui do bairro, que nos cederam a cozinha do salão paroquial.  Com isso conseguimos voluntários e hoje tem dias que produzimos 350 marmitas aqui pro bairro.

 

Precisamos de infraestrutura, pois hoje para irmos ao mercado são 10km de carro ou de a pé, precisamos cruzar a BR que é muito movimentada e caminhar alguns quilômetros. Precisamos muito de material de limpeza, pois mesmo depois de limpa, as casas continuam a produzir mofo. Temos muitos moradores que estão indo embora da cidade com medo de nova enchente.

 

Precisamos fomentar o comércio novamente em nossa cidade, pois temos muitos comércios pequenos que precisam de auxílio. Formamos um centro de distribuição de doações no salão paroquial aqui no bairro. E os itens mais procurados ultimamente são toalhas de banho e colchão.” 

 

Ouça o depoimento: https://open.spotify.com/episode/6AoY5YeQ368Y12TEVc4g40?si=4b2df12d296149d2
 

Depoimento Janete Silva da Silva

 

Nome: Janete Silva da Silva 

Casada com José Manuel Corrêa. Tenho uma filha de 22 anos e duas netas

 

“Estamos em Eldorado do Sul há mais ou menos 15 anos e nós fazemos parte da paróquia Medianeira de todas as graças há mais ou menos há 15 anos também. 

 

Não me recordo de ter sido informada da enchente. A única coisa que me recordo é que nós estávamos em casa e recebemos mensagem de amigos que as águas estavam chegando em Eldorado do Sul e que aconteceria uma enchente pior do que a última. Então, essa é a informação que nós recebemos e começamos a acompanhar nas redes sociais. Esta enchente afetou todo o nosso lar. Então, na nossa casa, as águas chegaram ao telhado. Nossa moradia foi afetada, nossa atividade profissional, nossa atividade na comunidade. 

 

Então, ainda não conseguimos nos reestruturar e estamos tentando recomeçar. E tem sido para nós esse período em Guaíba muito difícil, muito complicado. Foi a cidade que nos acolheu e está sendo, nesse momento, para nós uma cidade dormitório, pois é como se estivéssemos trabalhando. Passamos o dia em Eldorado limpando há alguns dias. Agora já estamos indo para um mês. Vamos para Eldorado do Sul, passamos o dia na limpeza das casas e retornamos à noite para dormir. Então, assim está sendo todos os dias. E a cidade de Guaíba tem sido para nós uma cidade que nos recebeu muito bem. Nós fomos muito acolhidos e recebemos o suporte que precisávamos. Nesse tempo das cheias nós ficamos na paróquia Nossa Senhora do Livramento. E tivemos todo o suporte necessário no período em que ficamos lá. Nós ficamos em 12 pessoas e, sem palavras, tudo o que foi nos fornecido, tudo o que nós vivemos lá, recebemos muito mais do que imaginávamos. E foi um apoio para nossa família muito grande, pois tenho um cunhado que está com câncer. Ele foi atendido por médicos lá. Nós também éramos atendidos por médicos, até por causa das crianças. Meu pai também tem problemas de saúde. Então, o alimento, as vestes, colchão, tudo foi nos dado e nos fornecido da melhor forma possível. Então, nós fomos bem assistidos. Graças a Deus. 

 

E sempre sinto, em meio a tudo isso, sempre sobre o olhar de Deus sobre nós. Eu tenho essa certeza, porque nós fomos muito bem cuidados como filhos do Altíssimo, não menosprezando os outros, mas esse sentimento que eu carrego comigo todo esse tempo, até aqui, estamos sobre o olhar de Deus e somos muito gratos por tudo que nós estamos vivendo. Em meio a tantas perdas, mas a certeza que o Senhor está conosco. Então, nós estamos tentando, da melhor forma possível, auxiliar também aqueles que mais precisam. Nós ajudamos da forma que podemos, porque ali mesmo, no bairro Cidade Verde, em Eldorado do Sul, nós nos ajudamos entre nós mesmos. No alimento, nas vestes, no suporte, numa palavra, num abraço. E nós, também, em meio às doações, estamos indo ao encontro daqueles que não conseguem chegar. Nós tivemos um momento onde saímos pelas ruas de carro e fomos naquelas casas onde os filhos de Deus estão esquecidos. Chegamos com mantimentos, com roupas, com produtos de limpeza. E é tão bom quando a gente vê o povo sorrindo em meio a tudo isso. A alegria é quando eles veem que estão sendo lembrados, assim como eu, quando nós somos lembrados e não esquecidos. 

 

Ainda há muita gente em Eldorado do Sul que está esquecida. As doações chegam a todo instante, a todo momento, mas eu tenho visto que não tem chegado em quem precisa realmente. Porque na minha rua mesmo, eu vejo aquelas doações a todo instante, mas sempre são as mesmas pessoas que recebem. Nada contra o recebimento, mas o sentimento que me vem ao coração é que muitos estão recebendo e aquele que mais precisa não está chegando. No início desta semana, nós fomos ao encontro de algumas famílias, crianças, idosos, levar banana, levar quiboa, kits de roupa, de higiene. A gente tenta aquilo que a gente, o pouco, tentamos fazer o melhor possível para que essas pessoas também possam receber o que nós estamos recebendo. 

 

O apoio hoje mais necessário, neste momento, de um futuro próximo, o que vem muito no meu coração é que nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que vem da boca de Deus, de toda palavra que vem de Deus. Tenho sentido essa falta. Então, estão chegando muitas coisas, muitas coisas, mas o principal, que é o Senhor, não. Hoje está faltando o centro. Estamos esquecendo aquele que criou, aquele que fez, aquele que gerou, aquele que soprou e deu a vida por nós. Então, sinto hoje muita falta, muita falta desse momento da espiritualidade, nós que tínhamos uma vida ativa espiritual na cidade de Eldorado do Sul, tanto que a minha vida, a minha família, por eu estar em Eldorado do Sul, por sair de Guaíba para ir morar em Eldorado do Sul, meu testemunho de vida foi devido à missa diária. Era o único lugar onde eu encontrava a missa diária. Foi onde eu me encontrei com o Senhor, depois o grupo de oração. Então, tínhamos uma vida muito ativa espiritual. E agora está difícil de se encontrar. Então, hoje, olhando tudo o que nós estamos vivendo, o mais necessário neste momento seria essa parte da espiritualidade. Esse mover do Espírito Santo, esse contato com Deus, essa movimentação do povo com o povo, levando a palavra de Deus, aqueles que sabem mais para aqueles que sabem menos, ir ao encontro, ir ao encontro não só com a comida, não só com os mantimentos, mas trazer a Deus. Trazer a Deus, assim como diz a palavra do Senhor, nós somos a imagem e semelhança de Deus. 

 

Nesse momento, sinto a cidade muito abalada, enfraquecida por tudo que estamos vivendo e sinto essa necessidade, essa espiritualidade, esse auxílio para o nosso pároco, esse auxílio espiritual para a comunidade, para que nós possamos nos reerguer, porque nós temos muitas histórias bonitas, muitas histórias, muitos testemunhos de vida dentro da nossa comunidade, e isso não pode morrer. Precisa ser avivado, assim como o Pentecostes, assim como o Espírito Santo, que é vivo todos os dias, e precisa renascer todos os dias. Então, é isso. Para o futuro próximo, eu, Janete, gostaria desta igreja, esta igreja em saída, esse corpo de Cristo que somos todos nós.”




 



Autor:
Marcos Koboldt

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