Exigências do nosso tempo

19/11/2020

A sociedade está sofrendo um processo de metamorfose, sem saber para onde caminha e sem conhecer o novo que deve surgir. Até um tempo recente, o centro dos debates nas diversas instâncias da sociedade era marcado pelos desafios das mutações climáticas, da especulação financeira, dos organismos geneticamente modificáveis, da energia nuclear, do uso de pesticidas para a saúde e o ambiente, dos fundamentalismos religiosos e políticos. Certamente tais desafios continuam exigindo decisões sóciopolíticas. No entanto, recentemente se instalou entre nós um vírus, que expôs de forma contundente aqueles desafios, exigindo ainda mais rigor e determinação não só na busca de meios para fazer frente aos riscos que o novo coronavírus representa para a humanidade, como também coragem para analisar rigorosamente possíveis causas de tal situação. Atualmente, há um empenho gigantesco para encontrar uma vacina capaz de atender a todos. Tal esforço é digno de reconhecimento; é uma necessidade vital. No entanto, há uma nova antropologia sendo forjada no bojo da sociedade, que escancara limites não reconhecidos até um passado recente: a solidão de muitos, o isolamento de outros tantos, a exclusão de um número considerável de pessoas dos bens de produção, as contradições que regem as leis do mercado, a desigualdade de oportunidades, de bens, de acesso à saúde e à tecnologia, a necessidade de resgatar o lugar da humildade e da solidariedade humana, ou seja, de não perder de vista elementos basilares da existência humana: a sua condição mortal e sua necessidade originária do outro. O tempo presente está exigindo a superação de uma trágica redução antropológica, que insiste em propor o antigo materialismo hedonista, acrescido do “prometeísmo” tecnológico, por uma compreensão do ser humano, que promova sua originária identidade cultural marcada pela criaturalidade e filialidade. Um agente infeccioso microscópico está nos recordando que o ser humano não é um indivíduo separado, nem um elemento anônimo no meio da coletividade, mas sim uma pessoa singular e irrepetível, intrinsecamente ordenada para o relacionamento e para o convívio social. Propor uma reflexão consistente sobre a condição humana, orientada por pressupostos culturais, pela tradição ocidental marcada pelo judaísmo e o cristianismo, e por aspectos que a pandemia expôs, é tarefa para uma nova antropologia.


Autor:
Por Dom Jaime Spengler, arcebispo metropolitano e primeiro vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

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