10/12/2020
Por Dom Jaime Spengler, arcebispo de Porto Alegre e primeiro vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Tomás de Celano (+1260) relata a devoção de
Francisco ao Natal do Senhor: “celebrava com incrível alegria,
mais que todas as outras solenidades, o Natal do Menino Jesus, pois
afirmava que era a festa das festas, em que Deus, feito um menino
pobrezinho, dependeu de peitos humanos. Beijava como um esfomeado as
imagens dessa criança, e a derretida compaixão que tinha no coração
pelo menino fazia até com que balbuciasse doces palavras como uma
criancinha. Para ele, esse nome era como um favo de mel na boca”.
Nós admiramos, mas ao mesmo tempo estranhamos, ficamos incomodados com a devoção tão crua de um santo medieval. Admiramos sua simplicidade, sua religiosidade, essa maneira pura de se relacionar com o menino Deus a modo do povo simples; tão sincero, autêntico, direto e apaixonado! Mas não somos capazes de, nem queremos viver a nossa religião dessa maneira imediata e explícita, sim, impetuosamente engajada como o faz Francisco de Assis. Alguma coisa em nós nos faz dar um passo para trás. É algo como distanciamento “crítico”, uma espécie de receio diante de uma fé tão pessoal.
Entramos no advento do Natal, e logo nos perdemos nos afazeres do alvoroço da festa. Do Natal que a todos mobiliza, desde as crianças até aos anciãos. Na medida em que o Natal se aproxima, aumenta o frenesi do consumismo venal. Produtos expostos, compras de presentes, muitos correndo, trabalhando, vendendo e comprando, embalado na música e no ritmo acelerado dos negócios e tráfegos comerciais. Para produzir, vender e ganhar, para fazer comprar e gastar, a rotatividade do lucro usa de todos os recursos e meios para motivar, influenciar e propagar a ânsia de gastar.
A Virgem Mãe e o seu Menino da Noite Feliz são vestidos em diferentes disfarces tradicionais e modernos, ora românticos e piedosos, ora secularizados e boçais; sempre de novo mãe e criança são usadas e abusadas em função do lucro, a serviço da venda.
O que há com o nosso Deus encarnado e a sua Virgem Mãe, na onda avassaladora desse frenesi venal? O que há conosco, que na saudade e na vontade de um mundo melhor, mais justo e humano, desencadeamos a avalancha de progresso que parece nos engolir e arrastar de roldão, desvirtuando, falsificando tudo que nos toca o coração na profundidade de uma velha seriedade e inocência, cujos ecos longínquos escutamos na melancólica nostalgia de uma devoção do tono antigo como de Francisco de Assis?
(*O presente texto é síntese de uma reflexão de H. Harada).